O Auto da Compadecida (2000)

O Auto da Compadecida (2000)

A comédia e a crítica social no cinema brasileiro.

por Giovani Zanirati


O Auto da Compadecida (2000)
Direção: Guel Arraes
Roteiro: Adriana Falcão, João Falcão, Guel Arraes
País: Brasil
Nota: 10/10

O aclamado ator e cineasta Charles Chaplin demonstrou, ao longo de sua carreira, uma habilidade ímpar para tecer narrativas que combinam humor e crítica social, provocando risos genuínos e instigando momentos de reflexão. Embora muitos espectadores possam não perceber as profundas camadas sociais e políticas subjacentes ao humor pastelão de seus filmes, é inegável que, ao refletir sobre sua obra, os motivos para o riso podem ser reinterpretados.
.
De forma semelhante, o filme brasileiro O Auto da Compadecida (2000), dirigido por Guel Arraes, embora não alcance o impacto de clássicos como Tempos Modernos (1936) ou O Grande Ditador (1940), reflete com precisão a crítica social característica do Cinema Novo, ao mesmo tempo que utiliza um humor explícito e, por vezes, quase pueril. Baseado na peça homônima de Ariano Suassuna, escrita em 1955, a obra foi inicialmente adaptada para a TV Globo em 1999, como minissérie, antes de sua estreia nos cinemas e consagração como um clássico do cinema nacional. A sequência lançada em 2024 trouxe ainda mais visibilidade à trama, desafiando até mesmo os críticos mais exigentes do cinema brasileiro.

Ambientado no sertão da Paraíba, o filme apresenta um Brasil marcado pela desigualdade social, fome e hipocrisia religiosa, mas também utiliza o humor popular para retratar a luta do povo nordestino contra adversidades e injustiças. A narrativa gira em torno de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), personagens que, forjados por esse contexto desolador, dependem de astúcia e malandragem para sobreviver, frequentemente enganando aqueles que os cercam.

Ao longo do filme, a dupla se envolve com uma série de personagens representativos das diferentes camadas sociais: o padeiro e sua esposa, figuras típicas da pequena burguesia; o padre e o bispo, símbolos do desvirtuamento da Igreja; o major e sua filha, representando a autoridade militar e seus interesses; o cangaceiro Severino e até o próprio Diabo. Através dessas interações, o filme expõe as contradições de uma sociedade dividida e enraizada na pobreza, ignorância e corrupção.

Nas tentativas de ascensão social, João Grilo utiliza a corrupção e a índole questionável dessas figuras como instrumentos para alcançar seus objetivos. O humor, ao mesmo tempo refinado e mordaz, torna-se uma crítica sutil à sociedade brasileira, sugerindo que, para a dupla de protagonistas, a única forma de prosperar é explorar esses elementos ao máximo.

Sem dúvida, o maior mérito reside no desempenho de seu elenco. A química entre os protagonistas é exemplar, criando um contraste perfeito de personalidades: João, astuto e inteligente, e Chicó, ingênuo e vulnerável. O restante do elenco também se destaca, com Marco Nanini, em sua interpretação de um cangaceiro, entregando uma performance irreconhecível e notável.

A direção de Guel Arraes é outro ponto alto, com sua habilidade de equilibrar humor e drama, criando uma narrativa coesa, onde risos e lágrimas coexistem organicamente. Ao entrelaçar com maestria elementos de comédia e crítica social, O Auto da Compadecida se firma como uma obra cinematográfica essencial, não só no contexto nacional, mas também internacional.

O sucesso do filme foi um marco na popularização do cinema nacional, superando 3 milhões de espectadores e conquistando tanto o grande público quanto a crítica especializada. Esse êxito ocorreu no contexto da revitalização do cinema brasileiro nos anos 2000, após o período de "apagão cultural" da década de 1990, e ajudou a restaurar a confiança nas produções nacionais.

Além disso, o filme obteve reconhecimento internacional, sendo exibido em diversos festivais e promovendo a cultura e o humor nordestino. Sua abordagem humorística, que mistura crítica social e política com comédia popular, influenciou cineastas posteriores e fortaleceu a identidade nordestina tanto no cinema quanto na televisão brasileira.

Postar um comentário

0 Comentários