O Poço (2019)
Existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem
por Giovani Zanirati
O Poço (2019)
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola, Pedro Rivero
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola, Pedro Rivero
País: Espanha
Nota: 09/10
A realidade social revela-se de forma contundente diante das severas desigualdades que permeiam a história da humanidade. Com o ocaso do feudalismo e do absolutismo, o sistema capitalista, que se desenvolveu do mercantilismo ao imperialismo, transformou apenas o cenário de opressão. Nele, os detentores do capital se sobrepõem, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais, à grande massa, subdividida em diversas categorias. Esse controle é tão potente que os opressores sociais conseguem reverter a narrativa e se apresentar como seres benevolentes, geradores de empregos e renda, insinuando que a condição desfavorecida de milhões é fruto da incapacidade de cada um de se adaptar à "selva" do darwinismo social. Este é o típico discurso meritocrático, que afirma que todos dispõem das mesmas 24 horas e oportunidades para prosperar.
Diferentemente do feudalismo e dos sistemas de castas, o capitalismo ainda propõe a possibilidade de ascensão social. Assim, um indivíduo que nasce em condições precárias pode ascender à classe média ou até à elite, enquanto um milionário pode falir e enfrentar a pobreza. Contudo, a exceção confirma a regra: a cada década, o ritmo da desigualdade só se intensifica. Os ricos acumulam ainda mais poder, dominando as estruturas sociais e políticas, impondo suas ideologias, enquanto direitos sociais arduamente conquistados são desmantelados sob a justificativa de que é preciso limitar gastos para evitar prejuízos ao Estado e, consequentemente, à ordem econômica. Dessa forma, existem poucas mudanças estruturais e enfraquece a luta de classes - se ela, ainda, existe.
A crise sanitária provocada pela Covid-19, contexto do filme em questão, ilustra bem essa realidade devastadora. Em meio a uma crise que demandaria proteção e suporte, as pessoas com menos recursos perderam vidas ou caíram na pobreza, enquanto instituições financeiras se aproveitaram do caos para acumular lucros exorbitantes. Assim, uma minúscula fração da população controla mais da metade da riqueza global. Não são necessários documentários, livros ou filmes para evidenciar o horror de nossa sociedade. Com tantos recursos disponíveis, o sistema falha em cuidar das pessoas em momentos críticos, como evidenciado pela pandemia e, mais recentemente, pelas enchentes no Rio Grande do Sul, que deixaram muitas pessoas sem casa, bens e entes queridos devido a décadas de negligência em investimentos na área.
A cultura, portanto, serve para refletir e chocar. Expor de maneira visceral essa realidade é fundamental. O filme O Poço, lançado em 2019, propõe uma metáfora poderosa relacionada a um bem essencial: a comida. O dilema abordado no filme está atrelado à escassez de recursos ou à ganância? Quantas vezes ouvimos que a população cresce gradualmente enquanto os recursos são escassos? Por que não questionar a distribuição desigual desses bens? Como cultivar solidariedade em um mundo cada vez mais brutal e egoísta? O Poço provoca reflexões profundas e inquietantes.
Na prisão "vertical" bizarra, dividida em centenas de níveis, o protagonista Goreng (Ivan Massagué) desperta em um nível intermediário, ao lado de Trimagasi (Zorion Eguileor), seu único companheiro. O idoso explica que, devido à natureza da prisão, a luta é pela sobrevivência. Uma vez por dia, uma mesa repleta de comida desce do nível 0, a cozinha, para os níveis inferiores. Porém, essa plataforma permanece por poucos minutos, forçando os prisioneiros a aproveitar ao máximo. Embora não haja limites para a quantidade que podem comer, eles não podem guardar nada, sob pena de punições. Assim, os prisioneiros dos níveis superiores consomem o máximo possível, reduzindo as sobras para aqueles nos níveis inferiores, que frequentemente se deparam apenas com pratos sujos.
Diante desse cenário, muitos prisioneiros passam um mês sem receber alimento. Em meio a essa bizarra luta pela sobrevivência, o canibalismo emerge como uma alternativa cruel. A falta de solidariedade se torna evidente, com a ganância superando o instinto de sobrevivência do próximo. Enquanto os de cima se fartam, os de baixo se veem reduzidos a migalhas ou à morte. O protagonista é confrontado por questões morais cruciais: a solidariedade coletiva poderia garantir a sobrevivência de todos. Afinal, se cada um comesse o suficiente, haveria alimento para todos.
Nem mesmo a regra de troca mensal de níveis — onde quem está no nível 6 pode, no mês seguinte, estar no 250 — favorece esse pensamento. Isso levanta questões sobre a migração de classes no capitalismo: será que um assalariado que passou fome na infância, ao ascender à classe média, se tornará solidário aos mais pobres ou defenderá a meritocracia com fervor?
O filme, então, destaca a transformação de Goreng, um personagem que, após intensa provação, precisa reagir. Suas decisões poderão reverter sua lógica inicial? A luta pela sobrevivência traz à tona momentos de desconforto. A violência, especialmente nos níveis inferiores, onde o canibalismo é prática comum, é retratada de forma explícita, com uso constante do gore.
Por fim, há uma falta de clareza em relação a como cada indivíduo chegou à prisão e quais são suas intenções. A obra parece sugerir uma experiência social macabra, à semelhança de Round 6. Os sobreviventes ganharão algum prêmio? Aqueles que se mantiverem éticos serão recompensados? O personagem Trimagasi menciona, em um momento, a possibilidade de ganhar um certificado, mas essa e outras tramas secundárias parecem confundir e fragilizar a narrativa, comprometendo a suspensão de descrença necessária para aceitar a proposta do roteiro. Dessa maneira, resta esperar pelo segundo filme, que será lançado em outubro (2024).
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