Cidade de Deus (2002)

Cidade de Deus (2002)

por Giovani Zanirati


Cidade de Deus (2002)
Direção: Fernando Meirelles, Kátia Lund
Roteiro: Bráulio Mantovani
País: Brasil
Nota: 10/10

Considerada uma das mais importantes e influentes obras da história do cinema nacional, "Cidade de Deus" é a combinação perfeita entre direção, roteiro (adaptado do livro homônimo de Paulo Lins), fotografia, montagem e atuação.

É raro encontrar alguém, mesmo aquele que tem uma profunda aversão aos produtos brasileiros, que não aprecie esta obra-prima, lançada em 2002 e indicada a quatro categorias do Oscar (direção, roteiro adaptado, montagem e fotografia).

Com o passar dos anos, o filme se tornou uma das maiores referências da indústria cinematográfica, ampliando seu alcance a memes nas redes sociais devido às cenas memoráveis protagonizadas por seus épicos personagens, sob a direção do cineasta Fernando Meirelles e Kátia Lund.

A trama se passa nas décadas de 1960 e 1970, durante o período da Ditadura Militar, e acompanha o jovem Buscapé (Alexandre Rodrigues), que desde cedo testemunha a ascensão do crime organizado e da violência na Cidade de Deus, uma favela no Rio de Janeiro.

Com uma narrativa não linear e contada pelo protagonista, o filme oferece uma representação crua e visceral de um aspecto da realidade social brasileira, criticando o descaso do capitalismo em relação à população mais vulnerável, a corrupção e a violência.

Conforme o antropólogo Darcy Ribeiro expõe em suas obras e discursos, especialmente em "O Povo Brasileiro" (1995), o fim da escravidão não significou o término do racismo, da opressão e da desigualdade social.

A população negra, por exemplo, foi marginalizada pelo desenvolvimento capitalista, ficando sem espaço no mercado de trabalho e na educação. Assim, a opressão política e social apenas mudou de forma.

Ribeiro argumenta que, diante do cenário caótico, os excluídos, sem terra e moradia, se organizaram em comunidades carentes sem saneamento básico para sobreviver, surgindo as futuras favelas, que se tornaram a região dos pobres e desamparados.

No início do filme, Buscapé menciona que, quando as pessoas perdiam suas casas devido a enchentes ou incêndios criminosos, o governo as deslocava para as favelas, intensificando suas dificuldades e sofrimentos.

Sem o papel ativo do Estado, com uma burguesia sem um projeto de crescimento nacional, uma classe média cada vez mais elitizada e uma classe trabalhadora empobrecida, os moradores das favelas representavam um estrato ainda mais baixo na pirâmide social.

Essa é a base do filme. O roteiro adota uma estrutura capitular, apresentando a história da comunidade e de seus personagens através de eventos interligados que provocam desconforto e choque.

O passado e o presente são capturados com fluidez orgânica pela montagem de Daniel Rezende, que proporciona interações impactantes e preserva a qualidade e o dinamismo da narrativa. Às vezes, a impressão é de que são capítulos isolados de uma série, mas que se conectam em um todo coeso.

Alguns personagens ganham destaque inicial e depois têm seus desfechos, enquanto outros, como Galinha (Seu Jorge), têm um desenvolvimento mais lento e gradual, transformando-se em alguns dos personagens mais complexos do filme.

Todos são brilhantemente conduzidos por Meirelles, que escolheu tanto atores conhecidos quanto moradores da própria favela para compor o elenco, o que contribui para a autenticidade das atuações. Eles criam uma gama de emoções, como inocência, esperança, horror, medo e vingança.

O caso mais emblemático é a história de Zé Pequeno (Leandro Firmino). Embora pareça a personificação do mal (e seu amigo carismático Bené, interpretado por Phellipe Haagensen, reforça essa imagem), o jovem é um reflexo da sociedade à qual pertence. Na sua infância, como Dadinho (Douglas Silva), ele tinha como grande referência um dos primeiros criminosos da favela, o líder do Trio Ternura.

Curiosamente, a relação entre esses dois personagens desencadeia uma reação em cadeia que define as vidas de muitos outros. Com uma atuação impressionante de Leandro Firmino, o personagem é marcante em todas as suas aparições no filme.

Apresentado como uma espécie de gestor do tráfico, Zé Pequeno inicia uma série de ataques eficazes contra rivais da favela para consolidar seu poder. Seu objetivo é enriquecer com a venda de drogas, especialmente cocaína, e para isso busca pacificar a favela, proibindo assaltos e qualquer forma de violência.

Como relatado por Buscapé, Zé ganhou respeito entre os moradores, mas sempre que se via contrariado, mostrava seu sadismo para manter a ordem na favela, se vingar de ofensas pessoais e lutar pelo poder absoluto, especialmente no confronto com o traficante Cenoura (Matheus Nachtergaele).

Aliás, mais uma vez, Matheus entrega uma atuação memorável, contrastando com seu papel anterior de grande sucesso como João Grilo em "O Auto da Compadecida"(2000), e ao mesmo tempo, oferecendo a mesma autenticidade que os atores que conhecem de perto a realidade do filme.

Meirelles consegue imergir no cenário do filme com uma abordagem que às vezes tem um tom documental, mas também intimista, sempre conferindo uma humanidade singular aos personagens. Ele inclui o espectador no complexo cenário, aumentando o nível de tensão e horror e, por incrível que pareça, uma considerável dose de humor tanto ácido quanto pastelão.

Além de ser um espetáculo cinematográfico, o filme desafia o público, que está distante dos perigos representados, e confronta o sensacionalismo da mídia e os estereótipos associados aos moradores de favela. Expõe as falácias do discurso meritocrático defendido pela classe média e pelos detentores do poder econômico, que insistem em não reconhecer como a realidade social molda o indivíduo.

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